Meu amigo Antonio ficou viúvo. Sua esposa morreu de câncer
de pâncreas. Algo devastador, que derrubou em poucos meses a companhia de
temperamento forte, risonho e invencível.
Ele não contou com tempo para se preparar e se despedir. O
luto veio como um susto. De repente, depois de 30 anos de casamento, ele se
acordava sozinho e tomava café sozinho e conversava sozinho e se desesperava
sozinho. Antes, até sofrer, sofria com ela.
Sua primeira atitude, assim que depositou seu coração na
pedra do São Miguel e Almas, foi limpar a casa, tirar os objetos de Elisa de
perto dos olhos. A casa restou pela metade, uma residência casada com móveis de
solteiro. Pôs fora as roupas, os cabides carregados de ombreiras, recolheu os
vasos e bibelôs, arregimentou perfumes e produtos de beleza, esvaziou as
prateleiras. Não esperou doar para caridade. A dor é puro pânico, egoísta,
precisa se libertar da palavra, não consegue ser generosa.
Empilhou caixas e caixas de pertences valiosos na frente do
portão, para o lixeiro levar. Em segundos, despachou o que o casal acumulou
numa vida inteira. Quando morre a figura de nosso amor, mas o amor não morre,
não há o que escolher, tudo é lembrança sangrando de novo, somos crianças
mexendo, a cada instante, em cascas de ferida.
Antonio circulava pelos aposentos como um fantasma. Já
podia, porém, observar por onde andava. Não tinha que pagar mais pedágio ao
tocar em qualquer objeto. A faxina o protegeu dos próprios atos falhos. Ajudava
o esquecimento a esquecer.
O espaço dobrou de tamanho e intensidade: vazio, deserto,
imenso. Sem nenhuma foto ou quadro na parede. Sem nenhum risco de contato com o
passado conjugal.
Mas, ao mexer no armarinho do banheiro e buscar o barbeador,
encontrou a escova de cabelos de Elisa no fundo da gaveta.
A escova estava repleta de cabelos da Elisa. Cabelos vivos
de Elisa morta.
Ele odiava limpar a escova antes de se pentear, não
considerava justo, já que era fruto do descuido dela.
Agora não. Ele começou a suspirar devagar para não chorar. O
suspiro é o choro da boca.
Não aceitava que a escova tivesse sobrevivido a sua blitz.
Odiou aquele acessório com todo amor e amou com todo ódio.
Nas cerdas da escova, brilhavam cabelos castanhos e longos
que ele conhecia como ninguém.
Ele sentou-se no sofá e aproximou o nariz da escova, chegou
a raspar a pele, para recuperar o perfume do pescoço de Elisa.
Só que predominava o cheiro de madeira do cabo mais do que o
incenso de flor de sua memória.
Como um botânico aflito diante de espécie rara, tratou de
tirar um por um os fios da escova.
E fez uma trança dos cabelos de sua mulher morta.
Amarrou a mecha com um laço preto e inspirou longamente sua
fragrância. Nebulizou o rosto até reaver o gosto do beijo de Elisa. Nunca o
último beijo.
Fabrício Carpinejar
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