Mostrando postagens com marcador Maria Luiza Salomão. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Maria Luiza Salomão. Mostrar todas as postagens

domingo, 14 de dezembro de 2014

Ler o mundo


Fui convidada pela Juliana, da Escola Dante Guedini, que faz um belo trabalho, na Sala de Leituras, para dois encontros com uma escritora (eu) e os alunos, basicamente das 7ª e 8ª séries. 

Pedi que os alunos me ajudassem com perguntas e elas foram ótimas: 
qual o meu sonho; 
como começou a minha paixão por ler; 
qual a primeira dificuldade minha ao escrever; 
como lido com o tema e com o título do que escrevo (escrevo o que realmente sinto e penso?); 
quais as minhas referências como escritora-leitora. 
Perguntas que me ajudaram a conhecê-los.

Lembrei-me, antes de encontrá-los, da minha experiência como alfabetizadora. Descobri maravilhas sobre o ato de ler, tantos anos atrás. 
Cada um aprende a ler segundo uma experiência íntima, particular. 
Vi uma criança aprender, pelo som da letra, o método fonético desenvolvido (e criticado) por Maria Montessori. 
Na época era popular o método global, de Paulo Freire, na alfabetização dos adultos (o famoso MOBRAL, extinto pela ditadura militar, considerado subversivo). 
Muitas crianças eu vi aprenderem a ler com frases e até mesmo textos criados, oralmente, por elas, seguindo Freire.

Mas também vi criança aprendendo pelo antiquado método silábico, usado nas cartilhas. 
As cartilhas eram criticadas, nos idos dos anos 70, como método arcaico de alfabetização, que impedia a criatividade da criança. 
Mas vi criança se alfabetizar com a junção de letras: “b” + “a” = “ba”, considerado um péssimo método.

Aprendi, como alfabetizadora, que a gente aprende a ler, de maneira pessoal, da mesma maneira como se bebe, ou se come, ou se cheira e se toca o mundo ao redor. 
Há os detalhistas que, enquanto não veem todos os detalhes, não conseguem apreender a experiência e dar nome a ela. 
Há o que precisa de uma visão panorâmica, para situar o detalhe senão se perde, sem perceber o contexto.

Há pessoas que necessitam viver sensações: a experiência tem de ser concreta, sensorial, para conseguirem registrar experiência: são incapazes de abstrair. 

Em geral, crianças pequenas precisam de experiências sensoriais, antes de alcançar a abstração, e apreendem as experiências por “tentativa e erro”.

Outros apreendem um padrão e, através dele, encontram um sentido na experiência, organizando a sua percepção e, finalmente, alcançam o aprendizado.

Alfabetizar revela os diferentes tipos, humanos, de inteligência. 

Ler cria o futuro escritor e suas diferentes escritas também. 

É milagroso, para o alfabetizador, ver pipocar, um aqui, outro acolá, o leitor e o escritor futuros da nossa língua portuguesa. 

Quando nada parece estar a acontecer, silenciosa metamorfose vai ocorrendo. 
Alguém cego e surdo para os sinais crípticos, misteriosos, se torna, finalmente, alguém letrado e culto: cidadão da própria língua.

Obrigada, turma da E.E. Dante Guedini pela conversa sobre leitura/escritura: meu mundinho se alfabetizou mais, em leitura e escrita, com a experiência de nosso encontro. 

Alfabetização é um processo infinito, quando queremos ler o mundo, mais do que ler livros.


Maria Luiza Salomão, psicóloga, psicanalista

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Onde há um, há outro em potencial


Tenho registrado meus primeiros pensamentos ao acordar. Quero dizer, quando ainda não liguei a turbina do agir. Estou flutuando entre acordada e semi, e os pensamentos me tomam. Hoje foi este: qualquer projeto, coisa animal gente, que se ame, atenção reverência constância entusiasmo, traz aprendizado.

Aprendemos, sem dúvida, com um tipo de disponibilidade, que eu chamo amor, mas alguém pode chamar de outra coisa. Há quem aprenda com o humor e, às vezes, o humor é sádico e ama o grotesco. Há quem perca o amigo e não a piada. Eu perco a piada. Não consigo achar graça em ridicularizar ou humilhar gentes bichos pedras. Sinto mal estar íntimo com a feiúra, com o mal, com a destrutividade.

Não há feio que resista ao bom trato, à delicadeza, à atenção desinteressada. Pode ser bicho coisa gente: aparece alguma beleza que os olhos não registraram.

Não há mal que resista ao silêncio, ao recolhimento, ao vazio quando não há revide, ou violência de volta. Pode ser gente bicho coisa: aparece algum tipo de pudor e paralisia do ato maldoso que a ideia do mal não registrou.

Não há destrutividade que resista ao labor, ao movimento, à mudança de estado, quando não se permite sucumbir à violência do bate-volta, quando se refreia o ímpeto e o ódio. Pode ser coisa gente bicho: tudo permanece íntegro, quando a compaixão dirige a ação para novos ares, para novos projetos, novos estados de ser.

Acordei acreditando na maior beleza, no maior bem, na maior criatividade. Quem semeia chuvas colhe primavera. Quem quer o pouco chega a ter mais. O feio não lhe parece a quem ama o bonito.

Esperar e contemplar são qualidades fora de moda, mas estou aprendendo a cultivá-las mais e melhor. Perigoso alterar aquilo que ainda não estamos prontos para acrescer, multiplicar.

Tempo de novas mudas e colheitas. O mundo é vasto e mais vasto é o que não sei, não conheço, não fiz. Ainda não.

Hei de me cultivar e multiplicar.

Amanhã é outro dia, e serei outra amanhã.


Maria Luiza Salomão, psicóloga, psicanalista, autora de A alegria possível (2010)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O vazio existencial


Quem acordou um dia com um oco no peito, sentindo-se coisa e não gente?

- De repente, um enfaro, nada apaixona, nada faz mover um fio de cabelo?

- No raio de um instante, o desejo de sumir no mundo, repugnância pelo que vê, toca, ouve, fala; enjoo da própria rotina, vista, assim, sem sentido?

- Nauseado, a vomitar as vísceras vorazes de “mais e mais” sensações que, no andamento, lhe parecem bestas, inúteis, vãs?

- No triz de uma madrugada, pergunta-se: o que faz, fez, fará aqui, agora, com o que escolheu, batalhou, alcançou em parte, ou...?

- No átimo de um milionésimo segundo, se vê em um carnaval fora de hora, todos lhe parecem emborrachados de felicidades compradas ou falseadas. Para, abismado, olhos vítreos, se sente um ET, alienígena da grotesca coreografia de “família Doriana”, de “adolescência eterna”, de “politicamente correto”, etc. e tal?

Quem não?

Sensações passageiras, que nomeamos como tédio, desesperança, desespero, angústia. Realista para uns, pessimista para outros, alguns nomeiam “isso” de lucidez. Lucidez estranha, um facho de escuridão como disse Freud, para enxergar o que não emerge quando sob holofote.

Falta de sentido, falta de significado do vivido no passado e do que se vive no presente, mas também para o por vir, subjuntiva e futura mente: um vácuo, um oco, o vazio, o nada.

Alguns veem a incompletude e a vizinhança da morte. Outros descrevem o cavo do “nada”, sem possível preenchimento. Certezas em ruínas: uma Pompeia interior.

Outros ainda, aterrados, sentem-se fantasmas deambulantes do que pensam ser, não sentem que têm uma existência real, substantiva, na base do “eu sou”, ou melhor, do “eu é”. O eu existe para o outro, para o mundo? Apagar o passado e o futuro é Pompeia, sem o museu a declarar que existiu Pompeia.

Preencher esse vazio com coisas concretas ou com projetos (vá lá, uma abstração) é desviar da capacidade de se sentir já, aqui. É preciso não ser analfabeto emocional, ou não ser alfabetizado funcionalmente apenas nas emoções. Se não conseguir relacionar emoção/situação/experiência, não terá consciência do diagnóstico, do tal vazio existencial.

Se esse raio cai muitas vezes no mesmo lugar, atenção, está na hora de sintonizar consigo mesmo.

A oficina está do lado de dentro de você.

Maria Luiza Salomão - Nossa Letras

domingo, 14 de abril de 2013

A dor


Há dor de todo tipo:

– de amor não correspondido,

– do corpo, dos órgãos, dos sentidos.

– de banzo não explicado, nostalgia indefinível

– de inveja,

– de covardia,

– de ciúmes,

– pela traição de amigos,

– por paralisia, impotência,

– de arrependimento,

– por um revés econômico,

– pela separação, amputação de sonhos,

– de saudades,

– de remorso pela dor infligida ao Outro,

– por uma injustiça injustificável,

– por ausência de fé em si mesmo,

– por ressentimento, cancro mortal que estanca a fluência,

– por sabermos que não somos o que pensávamos ser,

– por sofrer preconceito, de qualquer ordem,

– de ódio,

– por se sentir excluído,

– pela morte de alguém muito íntimo,

– por não alcançar o próximo mais próximo.

O coração mói

a dor

(ou muitas).

Cada uma (espera-se),

ensacada e armazenada,

não seja nascida

em vão.


Nossas Letras > Letras, Arte e Cia > Maria Luiza Salomão