quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Me chamem de velha

A velhice sofreu uma cirurgia plástica na linguagem
Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”.  Pensei: “roubaram a velhice.
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Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma.
Vale tudo.
Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. A velhice é o que é.
É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também.
Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital.
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Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.
A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la.
Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor.  Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.
Não, eu não sou velho. Sou idoso.
Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso.
Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade.
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Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem.
Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela.
Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito.
Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada.
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Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos.
Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar.
Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar.
Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.
Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.
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Envelhecer não é fácil. Longe disso.
Mas se existe algo bom em envelhecer, é o “espírito velho”. Esse é grande.
Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero.
Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole.
Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas.
Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los.
Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas.
Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora.
Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. Envelhecer o espírito é engrandecê-lo.
Alargá-lo com experiências.
Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos.
Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar.  É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.
Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem.
Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará.

Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha.
Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força.
Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.

Eliane Brum
http://revistaepoca.globo.com



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