Na semana
passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por
“velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas
sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só
aceitavam ser “idosas”. Pensei:
“roubaram a velhice.
........
Desde que a
juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos
convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma.
Vale tudo.
Asilo virou
casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do
mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. A
velhice é o que é.
É o que é
para cada um, mas é o que é para todos, também.
Ser velho é
estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também
profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa
de vital.
.....
Que ninguém
quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar
o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.
A velhice
nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la.
Numa
sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é
perder valor. Os eufemismos são a
expressão dessa desvalorização na linguagem.
Não, eu não
sou velho. Sou idoso.
Não, eu não
moro num asilo. Mas numa casa de repouso.
Não, eu não
estou na velhice. Faço parte da melhor idade.
......
Chamar de
idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem.
Velho é uma
palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela.
Velho é
letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um
espírito.
Idoso fala
de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada.
......
Idoso e
palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a
domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como
disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90
anos.
Idosos são
incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar.
Velhos
incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para
andar.
Idosos
morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.
Velho é uma
conquista. Idoso é uma rendição.
.....
Envelhecer
não é fácil. Longe disso.
Mas se
existe algo bom em envelhecer, é o “espírito velho”. Esse é grande.
Vem com
toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, sou
consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero.
Me apavoro
bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole.
Me
estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me
levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas.
Conheço
cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los.
Continua
doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas.
Mantenho as
memórias que me importam e jogo os entulhos fora.
Torço para
que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais
divertidas. Envelhecer o espírito é engrandecê-lo.
Alargá-lo
com experiências.
Apalpar o
tamanho cada vez maior do que não sabemos.
Na velhice
havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais
superlativas do que desconhecemos e queremos buscar. É essa a conquista. Espírito jovem? Nem
tentem.
Acho que devíamos
nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não
deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem.
Nem
consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se
não chegou, ainda chegará.
Quando
chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha.
Me sentirei
honrada com o reconhecimento da minha força.
Sei que
estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro,
espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de
encerrar minha travessia com a graça de um espanto.
Eliane Brum
http://revistaepoca.globo.com
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