quinta-feira, 15 de março de 2012

EU SEI, MAS NÃO DEVIA

 Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia.


A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. 
E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. 
E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. 
E, a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. 
A tomar o café correndo porque está atrasado. 
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. 
A comer sanduíche porque não dá para almoçar. 
A sair do trabalho porque já é noite. 
A cochilar no ônibus porque está cansado. 
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. 
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. ( ...) 
A gente se acostuma  para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. 
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. 
A gente se acostuma para poupar a vida. 
Que aos poucos se gasta, e que,  de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti

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